Não é preciso a "terceira": a guerra, há tempos, já é mundial
Apesar do alarmismo e estado de tensão permanente, conflitos regionais mostram reflexos globais muito extensos para serem considerados essencialmente locais
É muito comum que se caracterize e se tema qualquer escalada global como uma possível nova guerra mundial. O alarmismo faz parte da guerra psicológica, e atacantes e atacados podem usar a ameaça da globalização do conflito para adquirir concessões, fortalecer ou afrouxar laços diplomáticos e buscar acordos comerciais, militares, de políticos de longo prazo entre nações aliadas.
A tipificação, marcada pelos dois primeiros grandes e definidores conflitos de nossa história moderna — a 1º e 2ª guerra —, porém, carrega pressupostos que não se aplicam mais aos conflitos armados da época que vivemos. A tecnologia avançou, a dinâmica dos conflitos se alterou, e a emergência de conceitos como guerra híbrida e guerra assimétrica tomaram corpo.
Apesar de tendências apontarem para a continuidade de conflitos predominantemente urbanos (no que tange o combate armado), eles se afastaram dos grandes centros das potências ocidentais. Se antes a marcha dos soviéticos visava Berlim, hoje, existe uma regionalização dos conflitos longe das fronteiras dos políticos que as financiam. Oriente Médio, Ásia e África se tornaram palco dos confrontos, com as potências, por fora, financiando a queda de regimes e exportação de tecnologia militar — principalmente aérea, com drones, caças e aviões inteligentes.
Não é preciso mirar nossa visão para conflitos do “passado” como Iugoslávia em 1999, Iraque em 2003, Líbia em 2011 e Síria, que teve o início de um novo capítulo com a queda de Bashar Al-Assad, em 2024. O conflito recente entre Irã, Israel e EUA demonstra perfeitamente a “mundialidade” do conflito. Observemos os países vizinhos, por exemplo. O Catar fornece apoio a jatos israelenses, que livremente são reabastecidos em pleno voo a partir de aviões lançados da base de Al Udeid. O Egito, fronteiriço com Israel, facilita há anos a continuidade do genocídio em Gaza, controlando a entrada e saída de palestinos de Rafah, o que quase levou a uma crise diplomática com uma série de países no ano de 2023, com cidadãos do mundo todo que buscavam deixar a região.
Na Jordânia, o Rei Abdullah intercepta drones iranianos que entram em seu espaço aéreo, realizando prisões em massa de palestinos em solo nacional. A Arábia Saudita apoia empresas que fornecem veículos militares para Israel, assim como apoia segmentos empresariais como o Phoenix Holdings, que possuí dois milhões de ações da Elbit Systems, que fornece 85% dos drones em Gaza/Cisjordânia. A Turquia permite o envio de petróleo a Israel via Azerbaijão, além de treinar pilotos israelenses para combate.
Os iranianos ameaçarem o fechamento do Estreito de Ormuz explicita, também, a dimensão mundial que os conflitos alcançam, mesmo sendo travados em campos de batalha diferentes. O canal é responsável por cerca de 20% do comércio global de petróleo. O Iêmen, importante aliado do Irã, pode novamente visar seus ataques sobre o Mar Vermelho e o Canal de Suez. A Rússia e a China também podem desempenhar papel fundamental, mesmo que de maneiras diferentes. O primeiro, dificilmente embarcaria no conflito por ter questões a resolver na Ucrânia, mas tem tratado recente com o Irã, e não é descartada a possibilidade de exportação de tecnologia militar. Os chineses, apesar de mais passivos, firmaram um acordo há cinco anos com os iranianos, com a mesma extensão que o acordo russo: 25 anos. O Irã, após a assinatura do tratado, se tornou o maior fornecedor de petróleo para os chineses.
A intervenção chinesa não se daria como a americana, com bombas, mas por meio de inteligência e interferência eletroeletrônica contra os sistemas digitais dos inimigos. Navios com esses sistemas já foram detectados no Golfo. Além disso, a ferrovia entre Teerã e Urumqi, na China — inaugurada no fim de maio — é o primeiro projeto do BRI no Irã. A ferrovia atravessa o Uzbequistão, Cazaquistão e Tajiquistão em 15 dias, permitindo ao Irã manter-se abastecido militarmente em caso de guerra prolongada, caso os chineses optem por isso. — Bruno Huberman, Prof. de Relações Internacionais da PUC-SP, em seu texto “Trump ataca o Irã: agora é guerra global?”.
É de uma falsa percepção, portanto, pensar que a diplomacia, pós—guerra-fria, se tornaria a chave no sentido das relações internacionais. Pelo contrário: com o advento da nova ordem multipolar, materializada no crescimento exponencial da China, no reequilíbrio financeiro da Rússia e no avanço econômico dos BRICS, os conflitos apenas aumentaram. Atualmente, segundo a Academia de Genebra, mais de 45 conflitos armados estão ocorrendo atualmente em todo o Oriente Médio e norte da África. Na Ásia, são 31; na Europa, sete; na América do Sul, seis. A grande maioria deles envolve atores armados não estatais e intervenções estrangeiras de potências ocidentais. Os EUA fortalecem cada vez mais a OTAN como seu braço armado de influência, submetendo a Europa a uma posição de subserviência, enquanto financia seus blocos mais importantes: Israel e Ucrânia.
Uma das chaves para compreender a guerra em formato mundial, hoje, passa pelo posicionamento de cada país, quando estes conflitos os prejudicam, já que há uma falência das organizações internacionais que deveriam servir como mediadoras e fiscalizadoras do cumprimento do direito internacional, se esforçando para que a via diplomática prevaleça. Mais uma vez, acredito somente no conceito de uma grande guerra assimétrica, que pode se tornar sistêmica. Mas, devido ao grau de assimetria, a maioria das nações, por vezes, depende do posicionamento das grandes potências — principalmente as nucleares. Uma coisa que não muda, pelo menos, é a receita já conhecida: as grandes potências ocidentais vendem a solução para os conflitos que elas mesmas criam.